O desabrochar de dona Neusa.

 



Dona Neusa fazia de tudo para manter a harmonia daquele lar. Criara oito filhos e sempre  considerara os desejos dos filhos e do marido em primeiro lugar. Fora católica desde sempre e se habituara aos questionamentos não respondidos ou às respostas insatisfatórias no campo filosófico-religioso. Até que um dia o marido chega com uma novidade:


  • Agora vamos frequentar uma religião nova, ou melhor, uma nova filosofia religiosa.


  • Do que você está falando?


  • Do espíritismo. Um amigo do trabalho frequenta há muitos anos e me deu uns livros para ler. Agora, depois da leitura, estou pronto para frequentar.


E não houve mais discussão: passaram a frequentar o tal de espiritismo, embora Neusa continuasse a ir às missas todos os domingos pela manhã, pois era uma tradição familiar.


O tempo passou e após lerem muitos livros (Neusa sempre gostou de leitura) a  nova filosofia religiosa estava quase que inteiramente internalizada. Seu marido porém, queria romper com as antigas tradições: 

 

  • Por que você insiste em frequentar a igreja católica se já não tem laços filosóficos e ideológicos que a prendem?


  • Eu tenho muitos amigos por lá e não gostaria de romper esses laços. 


  • Acontece que domingo pela manhã temos estudos doutrinários e eu já fiz a sua inscrição.


  • E se eu não quiser ir?


  • Nem pense nessa hipótese. Nossos filhos já estão criados e não há nada que nos impeça de ir.


E assim dona Neusa viveu quase sessenta anos ao lado do senhor Décio, até que este desencarnou numa bela manhã de setembro. 


Dois anos após o passamento, via-se uma dona Neusa mais falante e participativa nas atividades do centro espírita. Até que um dia surge um assunto do qual ela preferia fugir, mas dessa vez ia se posicionar;


  • O encontro com as almas afins é inevitável no além. Como é bom quando revemos aqueles a quem amamos na terra. 


  • A senhora não vê a hora de poder rever o Décio não é dona Neusa?


  • As coisas podem não ser o que parecem. 


  • Como assim? Vocês não viverem em harmonia durante décadas?


  • Às vezes, o que parece harmonia é a submissão de uma das partes que acaba sendo anulada de certa forma.


  • Mas esse não parecia ser o caso de vocês!


  • Porém, o fato é que eu me acomodei e nunca fui feliz tendo que engolir o que sentia e o que pensava sempre.


  • Mas a senhora não gostaria de reencontrá-lo para tentar resolver essas questões?


  • Por enquanto o meu desejo é estar o mais distante que puder dele. Bastam décadas de silêncio!


Todos ficaram boquiabertos diante daquela confissão sincera, embora alguns a tivessem censurando intimamente. Mas de uma coisa ninguém poderia duvidar: dona Neusa estava mais espontânea, maís segura, mais autônoma.



E você? Já viu casais parecidos com dona Neusa e senhor Décio?



Francisco Lima


Bom dia!!







Comentários

  1. É o que mais se vê. Conheci um casal, país de uma amiga que eram para nós adolescentes o par perfeito. Um do nosso grupo chegou até a dar ao filho o nome desse senhor. Todos os admirávamos, era um exemplo para nós. E para mim foi de importância vital no meu crescimento emocional. Era pessoa de classe média boa, mas simples. Trabalhava no BB à tarde, então saía cedo com seu barco para pescar. À noite passeava de mãos dadas com a esposa, eternos apaixonados. Ela passava o dia costurando, cuidando da casa, orientando a empregada, uma senhora pequenina que veio a se aposentar com todos os direitos trabalhistas. Era o que a via fazendo ao morar lá com eles o ano de 64. Bem, as filhas cresceram, casaram, assim como todos nós naquele grupo de adolescentes. A última vez que o vi ele estava no começo (?) do Alszaimer. Não sei se me reconheceu, já andava necessitando de alguém, no caso a mulher, que o ajudasse. Foi a última vez que os vi. Soube bem mais tarde do seu falecimento. E também soube (surpresa!) qua a "Tia Elza" havia se mudado pra outra casa, detalhes não sei, e estava viajando em excursões pra todo lugar. Era outra pessoa. Desabrochou. Pois é. As aparências enganam. A tímida e apagada mulher estava de bem consigo e com a vida!
    Deve haver muitos casos como esse e o da sua Neusa por aí. Talvez ela nem tivesse conhecimento de tão tolhida que era. Com certeza o amava. Bem, eu lhes sou eternamente grata pela virada que a minha vida
    deu depois da convivência com eles.
    Falei muito também dessa vez? A culpa é sua que me permite. Um abraço. ❤️♥️

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    Respostas
    1. Pode falar à vontade minha amiga. Casos como o citado por mim e o seu também talvez se encaixe nisso existem muitos por aí. Porém, eu discordo que isso seja amor. Aliás, ao contrário disso. É bom lembrar que o AMOR, na sua essência pura e raro, raríssimo no planeta Terra.

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    2. Mas a esse Amor, poucos têm alcance. Falo desse amor que conhecemos, que mexe com as nossas emoções, que nos desustrurura e outras nos estrutura (raro). Como saber o que há dentro do coração humano, não é mesmo?

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