História de um menino lerdo. Parte 1.
-Menino! Acorda! Estou falando com você! Será que esse menino bate bem da cachola? Um minuto depois….
-O que foi mãe?
-Já tem meia hora que tô falando com você seu pateta! Será que vou precisar te internar num manicômio?
-O que é manicômio?
Entre dentes: -Deixa isso pra lá menino retardado…
Na escola, o processo era, invariavelmente, o mesmo.
-Cadê a tarefa que passei no quadro, João? E os tapas e aqueles beliscões com as unhas enormes da professora Gissélia vinham em seguida. Reagir era apanhar em dobro em casa.
Algumas vezes João dava conta das tarefas escolares, mas nunca havia continuidade no processo, pois em casa não havia incentivo e ninguém acompanhava o "processo educacional" do menino e dos oito irmãos. Todos estavam no mesmo barco, talvez com algumas questões cognitivas em comum, mas João era diferente dos irmãos por ser uma criança muito introspectiva.
-Seus pais vão te dar uma surra se te ouvirem falando esse palavrão, João!
-Tá bom, eu sei que eles não vão compreender o significado desse palavrão, mas, vou tentar explicar: introspectiva é uma pessoa muito voltada para dentro de si e que interage pouco com outras pessoas.
-Meu irmão é chamado de "lerdo" por ser assim…. poderia pensar um coleguinha de João.
Mas João seguiu sua vida, repetiu a primeira série (antigamente era série e não ano) e foi levando. Passou batido pela segunda e terceira séries e, na quarta, repetiu de novo, só que, dessa vez, por excesso de faltas. Ele, então, não viu mais sentido em "estudar " e abandonou de vez a escola.
-Mas em casa, com certeza, alguém deve ter percebido o que ele estava fazendo e o coro comeu no lombo já calejado de João!
-Nada disso! Os adultos de casa estavam ocupados o suficiente com seus conflitos pessoais e conjugais para se dar conta das atitudes de um menino "lesado e preguiçoso" que não queria estudar.
João abandonou a escola e caiu na vida. Saia de casa bem cedo para vender doces ou picolés todos os dias. Se o calor permitisse, vender picolés era a melhor opção, mas se o tempo não tivesse aquele lindo sol do Rio de Janeiro, vender doces era a melhor opção.
João nunca se enrolou nas contas e sabia dar troco à freguesia, fazendo os cálculos com extrema facilidade. Sair de casa e se sentir útil era terapêutico para o menino João. Além do mais, ele aprendeu a ter muito mais autonomia quando optou por sair de casa para vender suas mercadorias e ganhar seu dinheirinho.
-Mas e a escola João? Alguém da vizinhança um dia perguntou.
-Não quero saber mais de escola. Nunca me serviu pra nada.
-Mas João, você quer ser camelô a vida inteira? Ainda não havia pensado nisso, por essa razão, fez o que fazia muitas vezes: deixou seu vizinho sem resposta.
Algum tempo depois: talvez uns dois anos, talvez menos um pouco, João foi matriculado pela mãe para fazer um curso numa instituição para menores que se propunha a arrumar ocupação no mercado de trabalho para os adolescentes.
O único problema, para João, é que ele seria obrigado a voltar para escola. Aos 16 anos, quase todos os alunos da mesma faixa etária já estavam cursando o segundo grau (atual ensino médio) e João havia parado de estudar na quarta série. Não gostou muito, mas voltou para escola.
O curso não era chato como a escola, pois havia dinâmicas de grupo, atividades culturais como danças e tinha futebol, algo que sempre foi uma frustração para João, um eterno "perna de pau". Mas, nem todos sabem jogar futebol, assim como algumas pessoas não sabem desenhar ou escrever bem.
Quando foram admitidos na instituição, os meninos e meninas tinham que fazer uma ficha e uma espécie de "prova" na qual, entre outras coisas,tinham que escrever uma história interessante que aconteceu na vida de cada um. João usou a imaginação e escreveu uma história de futebol e deu conta do recado direitinho.
Fazendo o curso, que era muito longe e exigia um longo deslocamento (dois ônibus para ir e dois para voltar), João não reclamava do esforço que tinha que fazer todas as manhãs. De tarde, ia para a escola e a rotina era bem cansativa. Mas João gostava de ir para a instituição que se chamava FEEM (FUNDAÇÃO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO MENOR) e, por incrível que pareça, estava gostando também da nova escola onde foi matriculado, pois detestava a escola anterior.
Um dia, houve uma palestra sobre saúde bucal na FEEM e a instituição estava lotada de crianças. Após a palestra, a tarefa era fazer uma redação (palavra assustadora essa) sobre o que foi aprendido na palestra. Quem fizesse a "melhor redação", levaria um prêmio para casa. Ninguém sabia qual o prêmio e todos se empenharam na tarefa. Algum tempo depois, a molecada já não aguentava de ansiedade e saiu o resultado:
O PRIMEIRO LUGAR FOI PARA A REDAÇÃO DO….. JOÃO.
O menino pensou que havia outro João e não deu muita bola para a assistente social Rosane, uma preta linda de corpo escultural, colírio para os olhos da molecada. Mas, era ele mesmo, o João da quinta série, aquele que estava com quatro anos de atraso escolar em relação aos meninos e meninas da mesma idade.
João ficou sem ação e recebeu o prêmio achando que houve algum erro na correção. Mas Rosane o olhou e, percebendo seu seu estado de espírito, mostrou a redação para o menino.
-Essa não é sua redação?
-Sim, sim. Disse desconfiado, mas constatando que era, de fato, sua redação que estava corrigida na mão da moça. O prêmio consistia de um saquinho contendo escova de dentes, fio dental, creme dental, enxaguante bucal, etc.
Em casa, João tentou contar a novidade:
-Mãe, olha o que ganhei na FEEM! Fiz a melhor redação. Sua mãe estava muito preocupada com os problemas dela e nem bola deu para o menino. João não pode compartilhar aquela alegria com mais ninguém, mas aquele fato foi importante, pois mostrou que João era capaz de escrever as coisas que pensava e sentia.
Ansiedade e espera.
João terminou o curso na tal fundação em 1982 e esperou meses (que mais pareceram anos ) até conseguir uma colocação numa grande empresa. Em 25 de março de 1983, João começou a trabalhar na Embratel, empresa imensa e que ele nunca tinha ouvido falar. Já no primeiro dia de trabalho:
-O menino, você mora na roça? A faxineira espumava de raiva, olhando o menino matuto com os pés cheios de lama.
Um olhar triste e uma cara sem graça foi a resposta daquele menino perdido num ambiente tão sofisticado. A partir daquele dia, porém, João arrumou estratégias para não chegar com tanta lama nos pés: sacos de supermercado e até um tênis reserva (que não tinha) eram opções. Lavar o tênis no banheiro externo passou a ser a opção mais viável.
Mas, estava muito difícil para o inquieto adolescente João a adaptação ao trabalho interno dentro da empresa. Normalmente não havia muita coisa para fazer e, depois de alguns longos vôos na rua sem explicação, João foi trabalhar no setor gráfico da empresa. Chamado de "mecanografia" era um local no qual havia muitas máquinas e muito trabalho. Mas, a adaptação lá foi mais difícil ainda.
E se foi de uma vez a paciência de Maria Inês.
Dona Maria Inês era chefe do setor de protocolo e cuidava também da contratação e dispensa de funcionários terceirizados do setor administrativo: Estafetas (mão de obra de maiores de dezoito anos que podiam fazer serviços externos) e patrulheiros ( menores aprendizes da FEEM, que não podiam fazer serviços externos).
Quando João voltou do setor mecanografia para o protocolo mais uma vez, a sargentona Maria Inês já havia deixado claro que ele não ia mais permanecer na empresa. Quando a assistente social de Nova Iguaçu fosse fazer a próxima visita algum tempo depois, já saberia que ele não havia se adaptado à empresa. Então, ele estava em compasso de espera. Seria dispensado e substituído por outro menor.
Deus sempre dá mais uma chance.
Quando João já se encontrava sem esperança e na expectativa de voltar para casa, a chefona apareceu com uma novidade:
-Um estafeta do DPD(DEPARTAMENTO DE PROCESSAMENTO DE DADOS) quebrou o pé e vai ficar meses afastado. Por isso, preciso de alguém para substituí-lo. Alguém se habilita ?
-Eu quero ir. João levantou do lugar cheio de ousadia e Maria Inês disse simplesmente:
-Eles não te querem lá. É mão de obra para de maior. Eles não vão aceitar você. Mas João não se deu por vencido:
-Mas não custa tentar.
A chefe saiu de cara fechada e não deu uma resposta naquele momento. No mesmo dia, porém, ela lhe pediu para se apresentar no novo endereço para entrevista no dia seguinte. Ele não conteve a euforia:
-Graças a Deus!
-É cedo pra comemorar, disse ela. Talvez você não fique lá.
Paulo "Escurinho" um pai preto.
João foi bem acolhido e gostou de cara do novo supervisor:
-Você pode trabalhar na rua garoto?
-A chefona disse que não pode, mas eu adoro a ideia.
-Então é só não falar nada pra ela. Mas você conhece as ruas da cidade?
-Não conheço muito, mas quero muito conhecer. Sei me virar.
-Gostei da sua atitude. Vou te mostrar as tarefas.
João estava feliz como um pinto no lixo, pois ficava o dia inteiro andando na rua, o que ele mais gostava de fazer. O serviço consistia de fazer vários pagamentos para os funcionários da empresa (algo questionável do ponto de vista ético) e João nem via o tempo passar.
Meses depois, Martins, o cara que quebrou o pé, voltou a trabalhar. João ficou assustado, pois tinha que voltar a trabalhar com Maria Inês e certamente seria dispensado. Paulo Escurinho, porém, gostou do seu trabalho e decidiu interceder ao seu favor.
- Dona Maria Inês, eu gostaria de ficar com o menino aqui. Ele se adaptou muito bem aqui e eu não queria que ele voltasse.
-Mas nosso acordo foi que ele voltasse. Mande-o de volta, portanto.
-Vou falar com meu chefe dona Maria Inês. Desligou sem esperar resposta.
Mais tarde:
- Dona Maria Inês, aqui é o Coronel Meireles. Quero pedir para senhora deixar o menino permanecer trabalhando conosco.
-Mas ele tem que voltar.
-Ele não precisa voltar coisa nenhuma. A senhora pode contratar outro garoto. Ele vai ficar conosco e disso eu não abro mão.
Maria Inês ficou furiosa, mas não pode negar um
pedido do coronel Meireles. João ficou radiante e passou a ir no protocolo só para olhar para a cara da antiga chefe.
Fim da primeira parte.
Ainda vamos saber muita coisa desse menino.
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