Carta aos meus pais no além.
Aos meus pais terrenos.
Papai e mamãe terrenos, me desculpem a eventual sinceridade, mas eu preciso expressar meus sentimentos da maneira mais honesta e clara possível para não restar nenhuma dúvida sobre as feridas que esse passado complicadíssimo deixou em mim. E creio que não apenas eu, mas meus irmãos também, talvez, queiram botar para fora o não dito, a mágoa reprimida pelas surras intermináveis e quase sempre sem motivos, pelas inúmeras questões não expressas, pois só tínhamos o “direito” de ficar calados, pelos afetos quase sempre negados, pela indiferença total de nunca ter sido olhado nos olhos, como se não existíssemos como seres humanos.
Mas Francisco, você ainda está vivendo no passado? Deixa de ser marquinha, porra, eu te criei como homem! Esta bem poderia ser sua resposta, né papai ?
Já você, mãe, poderia dizer assim: Mas eu não podia fazer nada por vocês, pois ele não deixava eu fazer nada e eu sempre fui mais vítima dele que vocês! Vocês não sabem o quanto eu sofri! Quantas vezes você apanhou dele mamãe? Nenhuma, pois você pegava faca e outros objeto, enfim, você sabia se defender. Reflita sobre essa frase , mamãe: “Uma mentira repetida mil vezes, pode até virar “verdade” na mentalidade daqueles e daquelas que preferem se negar a enxergar as coisas como elas realmente são, mas os fatos não mudarão devido à nossa ilusão”.
Caros genitores (pai e mãe no popular) , só hoje consigo dimensionar os sofrimentos oriundos da forma como fomos tratados quando éramos crianças e adolescentes. Foi um período difícil demais e reconheço que vocês até batalharam muito para sustentar tantos rebentos, filhos do desprezo que você, dona Maria, nutria pelo “seu Abel que e ele, não tolerando ser deixado de lado, forçava uma intimidade sexual que sempre (ou quase sempre)parecia atingir o fim desejado por você mãe: a procriação, pois sexo sem procriação era um pecado mortal na sua mentalidade e esse pecado a senhora não queria cometer jamais. O medo de ir para o inferno era o seu maior pesadelo.
A relação complicadíssima entre vocês, pais terrenos, atingia em cheio as crianças que eram produzidas em escala industrial e sem nenhum senso de responsabilidade. Você, mamãe, teve 11 filhos, mesmo tendo orgulho de dizer que detestava a prática sexual. Desses onze, como sabemos, nove (sete do casal) sobreviveram, ou melhor, viveram no fogo cruzado de dois espíritos imaturos que se detestavam sem esconder isso de ninguém.
Hoje enxergo as coisas por um ângulo diferente, mãe, vendo algumas coisas que naquele tempo eram mais difíceis de ver, pois eu não tinha maturidade para isso. O desprezo ao homem se estende aos filhos dele e eu sei até que não havia intenção consciente nessas atitudes, mas na prática foi isso o que aconteceu.
Falo que não houve intenção, pois sei que o tratamento que você deu aos seus dois “filhos legítimos” como você costumava dizer, foi tão frio e distante quanto o dispensado a nós, filhos do Abel”. Percebi que a afetividade não era o seu forte e, talvez, considerando o seu modo de agir com todos os filhos, também houvesse um bloqueio muito forte dentro de você mãe. Seu sofrimento também foi muito grande.
Mas nós não conversávamos sobre nada e ficamos quase a vida inteira na impossibilidade de saber o que te levava a imputar tanto sofrimento aos filhos do seu ventre, levando você a sofrer também, pois ninguém passa incólume a semelhante situação.
Papai, hoje vejo que a sua extrema agressividade era um misto de sua convivência nada saudável com mamãe e uma repetição de padrões de um passado de traumas. Já naquele tempo eu via você repetir que sua mãe era um “demônio em pessoa”, pois maltratava os filhos de todas as formas possíveis e imagináveis e você parecia detestá-la, mas, por imaturidade fazia com os filhos as mesmas coisas que ela fez com você e seus irmãos.
Você já parou para pensar nisso ou prefere negar o passado como mamãe?
No passado temos imensos desafios e questões que precisamos enfrentar para viver bem no presente e negá-los poderá nos fazer sofrer durante anos, décadas e até séculos. É isso que você quer para você?
Pai, acho que você era até um bom sujeito. É verdade que nunca teve um gesto de carinho conosco, mas, do seu jeito, você esteve mais próximo de nós que mamãe em alguns momentos, especialmente quando você contava os causos da sua terra natal e todos nos reuníamos ao seu redor.
Hoje vejo que você era uma pessoa que, apesar de alguns bloqueios sentimentais, até sabia se expressar emocionalmente muito mais que minha mãe que não conseguiu isso a vida inteira.
Seu problema maior, no meu modo de ver as as coisas hoje, era um desequilíbrio oriundo de uma sensibilidade espiritual que você não conseguia compreender e que te dominava algumas vezes te levando a atitudes totalmente descontroladas. Você tinha o que os espíritas chamam de mediunidade e, ao que parecia, nos momentos de descontrole, os espíritos dominavam boa parte das suas ações. E nós sofríamos as consequências com horas e horas de espancamentos que deixaram cicatrizes até hoje, especialmente naqueles que viveram em casa na sua fase mais atacada: entre o final dos anos 70 e os primeiros anos da década de 80. Meu irmão Tarcísio foi o que mais sofreu, indiscutivelmente.
Pois bem, mãe e pai, hoje vejo que vocês eram, de fato, extremamente imaturos e que não fizeram mais por causa dessa visão limitada da vida. Ou seja, vocês deram o que podiam dar naquelas condições complicadas das suas existências.
Mas essa constatação não impede que seus filhos tenham traumas conscientes ou não devido a esses e muitos outros fatos vividos naquelas situações tão adversas. E saibam que ninguém sofre por livre e espontânea vontade e eu só estou escrevendo esta carta porque o copo que já estava cheio por muito tempo, agora transbordou e eu senti a necessidade imperiosa de falar tudo o que vai no meu interior. Eu que fui quando criança e adolescente, um dos filhos mais calados, mais fechados e introspectivos, sinto agora necessidade de dizer o que não pode ser expresso naqueles tempos.
Cresci e, na primeira juventude, me apresentava como um ser humano rebelde e até revoltado, mas eu não tinha muita clareza dos porquês das minhas atitudes. Hoje eu sei que quase tudo era devido a esse distanciamento emocional a que fomos submetidos (eu e meus irmãos), mesmo sabendo que cada um reage de um jeito diante das mesmas situações da vida , todos nós vivemos traumas mais ou menos graves por causa daquelas situações, ainda que, no momento, alguns de nós, talvez, não tenhamos uma consciência clara disso, aqueles eventos nos movimentam até hoje.
No meu caso particular, fui tachado de burro, de pateta, idiota etc e isso me afetou negativamente durante muito tempo.
Mesmo me sabotando muitas vezes devido a estar preso nessa bolha do passado, consegui estudar, pois me dei conta de que eu não era nada daqueles rótulos que me foram imputados no passado. Entendi sozinho que eu poderia sair de bolha sim e foi assim que eu consegui fazer faculdade e me tornar professor. Tenho orgulho disso, mas as coisas não são tão simples quanto parecem, minha mãe e meu pai.
Como vocês sabem, trabalhei numa grande empresa e foi lá que minha mente teve uma primeira abertura para outros horizontes, sendo lá que eu fui descobrindo que eu tinha potenciais de inteligência e consegui ir galgando cargos até chegar num cargo intermediário numa área técnica, fundamental dentro da empresa.
Porém, a insegurança me perseguia e eu, mesmo ganhando bem e fazendo meu trabalho razoavelmente bem o que rendia elogios, estava sempre inseguro, achando que não merecia estar no lugar onde estava, tendo a impressão de não merecimento e inadequação. Durante muitos anos refleti sobre isso e hoje penso que as raízes de tudo isso estão nesse passado inacabado, mal vivido, incompreendido.
Depois de anos com medo de ser demitido, pois me sentia um impostor, fiz concurso sem ter estudado o conteúdo específico, mas passei e fui admitido como professor de história da prefeitura do Rio de janeiro. Pedi a empresa para me demitir, pois já tinha um cargo de professor na seeduc RJ e não dava mais para conciliar os três empregos.
Me desculpem estar colocando tudo para fora, mas é agora que eu tenho oportunidade para isso. Leiam até o fim, por favor!
Será que indo para a prefeitura consegui relaxar? Ainda não. Rapidamente percebi, como naquela canção do Lulu Santos que o passado ainda rondava minha porta (minha vida) feito alma penada.
A síndrome do impostor continua, a sensação de inadequação permanece fortíssima e, mesmo estudando psicologia durante muitos anos (para me conhecer melhor, pois tenho dificuldade de me abrir), ainda estou batalhando interiormente para dar um novo significado a esse passado.
Na área dos relacionamentos amorosos, nunca me senti digno de ser amado por ninguém e tenho um terrível medo de ser machucado, abandonado, preterido ( Um passado bem presente né). Mas, Não vou me aprofundar muito nesse aspecto, pois teria que escrever mais algumas páginas e ai, já não seria uma carta e sim um livro.
Acho que já escrevi até demais. Apesar de tudo o que sinto e tudo o que escrevi, quero seguir minha vida, superar meus traumas, desejando aos meus irmãos que eles também superem os seus e desejo a vocês aí do outro lado da vida. Reflitam sobre tudo o que foi lido e saibam que me expresso nessa carta por uma necessidade, pois conscientemente, já não culpo vocês por tudo o que aconteceu no passado, no entanto, ainda estou buscando o relacionar o sentido racional com o emocional e isso está levando mais tempo e sofrimento do que eu poderia supor.
Sigam em frente, se conscientizem e boa sorte para vocês.
Não quero mais guardar mágoas e um dia vou poder dizer que esse passado não me faz sofrer mais. Até lá, desejo tudo de bom pra vocês.
Fiquem com Deus!!
Francisco.
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